O acontecimento ainda está em nossa memória. Há dez anos, na noite de 13 de janeiro (uma sexta-feira), o navio Costa Concórdia realizava uma viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo que partiu de Savona, Itália, com mais de 4 mil pessoas a bordo.
Perto das 21h, ele passou pela ilha de Giglio a 80 km da costa. Mas o capitão Francesco Schettino mudou a rota e se aproximou demais da costa, com a intenção de saudar os habitantes da ilha, segundo testemunhas.
Neste momento, o navio se chocou com um aglomerado de rochas que abriu um buraco de cerca de 80 metros de comprimento ao lado bombordo do casco. Ele, então, entrou em navegação de emergência e uma grande quantidade de água inundou a praça de máquinas. A embarcação ficou à deriva por cerca de uma hora, até fazer uma curva e encalhar no sentido contrário à rota, tombar a boreste e naufragar. O erro ocasionou em um corte na corrente elétrica e, como consequência, afetou o gerador que estava dentro do barco.
Contrariando as normas de navegação, Schettino foi um dos primeiros a abandonar o navio e seus passageiros, além de se recusar a voltar a bordo. Ao contatar a Capitania local, o capitão foi repelido com um tenso diálogo, em que a ordem “Vada a bordo, cazzo” marcou o episódio que, infelizmente, resultou na morte de 32 pessoas.
Com o avanço das investigações ao longo dos anos, devido a conduta de Schettino, ele foi julgado e condenado a 16 anos de prisão por homicídio, naufrágio e por ter abandonado o navio. Atualmente, o italiano cumpre a pena no centro de detenção de Rebibbia, em Roma.
O resgate
A megaoperação de retirada do Costa Concórdia iniciou poucos dias após o naufrágio, com as licitações das empresas internacionais especializadas em resgates marítimo. Os primeiros cuidados para impedir um impacto ambiental foram tomados, estabelecendo um perímetro de proteção em torno do navio e a retirada dos restos de combustível.
Em 21 de abril de 2012 foi anunciado que o trabalho de resgate do navio estaria sob a responsabilidade da Titan Salvage, empresa norte-americana especializada em salvamento marítimo por todo o mundo, em parceria com a italiana Micoperi, especialista em engenharia e construção submarina.
Neste momento, o brasileiro Álvaro Guidotti, engenheiro naval de 51 anos, formado pela Universidade de São Paulo, foi chamado para integrar o projeto. “A Titan nomeou o diretor técnico e a Micoperi nomeou o gerente. Em seguida, cruzaram-se os vices, onde a Titan indicou o vice-gerente (no caso, eu) e a Micoperi, o vice-diretor”, contou Álvaro, que trabalhou por muitos anos para a Titan e ainda presta serviços para a companhia.
As duas empresas coordenaram mais de 500 pessoas ao longo dos dois anos e meio de trabalhos (encerrados no dia 23 de julho deste ano, com a rebocada do navio para Gênova), entre motoristas, carpinteiros, soldadores, técnicos, mergulhadores, engenheiros, médicos, biólogos etc. O grupo investiu inúmeras horas em estudo e engenharia, mapeou todo o terreno em torno do naufrágio, criou modelos de estrutura do navio que indicavam resultados teóricos do que aconteceria após cada fase. “Ao final, eles foram muito próximos aos teóricos”, disse Álvaro.
O interior do Costa Concórdia se transformou em um canteiro de obras. Mas como o navio estava inclinado, criou-se um plano horizontal para os ambientes de trabalho. Foi feito um treinamento de alpinismo para os trabalhadores se acostumarem com a inclinação do navio. “Monitorávamos diariamente o ar, ruídos, emissão, qualidade de água, poluição em organismos vivos, vegetação submarina… A quantidade de análises feitas em água, matéria orgânica, peixes foi impressionante. Havia sensores de poluição de ar e ruído em vários pontos ao longo da ilha, além da preocupação com a luminosidade que o canteiro de obras poderia causar à noite e atrapalhar os moradores”, detalhou o engenheiro.
Por se tratar de um incidente de proporções gigantescas (nunca ocorrido, até então, no que diz respeito à repercussão da mídia), o governo da Itália se envolveu no dia a dia da operação. “Para cada ação que fosse tomada ali, era necessário solicitar autorização. E tudo tinha que ser apresentado de maneira formal, documentado e assinado para avaliação e aprovação, com ou sem ressalvas”, disse Álvaro. “Eles não facilitaram o processo ao longo da evolução do trabalho, apesar dos sucessos de cada etapa. Mantiveram uma linha dura de fiscalização até o final. A cada 15 dias nos reuníamos com os representantes do governo e apresentávamos o avanço em relação à última reunião, projeção futura e antecipávamos as etapas seguintes”.
A instância judiciária também fez parte do cotidiano dos trabalhadores. Como o naufrágio causou óbitos, o navio era considerado cena do crime e o processo judiciário acontecia paralelamente ao resgate. Para qualquer modificação no navio era necessário comunicar ao tribunal para ter certeza de que não destruiriam evidências do processo.
Durante todo o período do resgate, Álvaro alternava viagens entre Brasil e Itália. “Ficava dois meses lá e um mês no Brasil. Mesmo aqui, a cabeça estava focada no resgate e dava continuidade no trabalho”, disse o engenheiro, que ressaltou ainda outro papel importante no grupo. “Promovia a comunicação entre todos os envolvidos. Eram pessoas de 26 países, com muita diferença de costumes, cultura, maneira de pensar e de gerir”.
Outros dois brasileiros fizeram parte da equipe de resgate do Costa Concórdia e trabalham com Álvaro há anos em salvamentos marítimos: Rui Teston era o chefe da base logística em Piombino. Por lá passavam todos os materiais e equipamentos utilizados no resgate. E Antonio José dos Santos trabalhou a bordo do navio em várias funções, como supervisor de solda e operador de guindaste. “O brasileiro é muito versátil e se adapta mais fácil a outras culturas já estabelecidas. É uma qualidade que nós temos. Aprendemos a nos virar com o que está disponível, além de termos muita flexibilidade”.
A experiência de mais de 20 anos em salvamento marítimo de Álvaro não o deixou com dúvidas de que o trabalho seria concluído. “A minha preocupação maior era fazer um trabalho de forma séria, correta, com segurança, minimizando potenciais impactos e no tempo mais breve possível”.
Etapas da remoção
A linha mestra para retirar o Costa Concórdia se manteve desde o início da operação, que basicamente continha a função de endireitar, reflutuar e rebocar o navio. Porém a execução de cada fase teve algumas adaptações ao longo dos trabalhos. Conheça o passo a passo das ações.
– Estabilização (concluída em novembro de 2012)
A primeira fase envolveu a fixação e a estabilização do navio para evitar qualquer escorregamento para o fundo. “Após o naufrágio, ele ficou apoiado em duas lajes de granito, mas estava solto”, lembrou Guidotti. A parte central estava em balanço (proa, popa, boreste e a zona central não encostavam no fundo) e foi soldada no costado de bombordo uma série de estruturas para fixar correntes que, posteriormente, foram passadas por baixo do navio e presas em torres instaladas no lado interno.
– Criação do fundo artificial (plataformas)
Na segunda etapa, a equipe construiu um fundo falso para apoiar o navio, antes de devolvê-lo à posição vertical, com sacos de cimento depositados nos espaços vazios entre as rochas e seis plataformas de aço (três grandes, medindo 35 m x 40 m, três menores, com 15 m x 5 m), com o objetivo de criar uma base estável para as plataformas. Depois de posicionar os sacos de argamassa, as plataformas foram fixadas no lugar.
– Ancoragem pelo lado da terra
A estabilização foi parte do sistema de ancoragem para fazer a rotação. Foram instaladas quatro torres (de um total de 12) que serviram de suporte, paralelamente à fabricação das plataformas para o lado do mar.
– Construção dos flutuadores e instalação a bombordo
Trinta flutuadores foram construídos para manter o Costa Concórdia boiando assim que ele retornasse à posição vertical. Inicialmente, os 15 modelos puderam ser instalados a bombordo (lado que estava fora da água).
– Instalação dos flutuadores a boreste
Ainda com o navio deitado, a equipe instalou os outros 15 flutuadores a boreste, de maneira submersa, já preparando-o para a reflutuação.
– Rotação do navio (parbuckling)
Fase delicada do projeto, na qual o movimento de rotação para endireitar o navio levou alguns dias, pois o monitoramento era constante. A operação utilizou cabos ligados entre os flutuadores e as plataformas submersas que foram puxados. Enquanto isso, os cabos conectados às torres do outro lado foram utilizados para contrabalancear. “Essa foi a prova final para sabermos se a plataforma construída seria suficiente para suportar o peso da embarcação e se o casco não aguentaria a pressão”, lembrou Guidotti.
– Equilíbrio para o inverno
Durante os mais de dois anos de trabalho, a equipe enfrentou o inverno europeu, que impossibilitava as ações do lado externo do navio por alguns dias. Além disso, fortes ondas acertavam em cheio a lateral do Costa Concórdia. “A preocupação, após o navio estar apoiado na plataforma, era colocar as estruturas para travá-lo e não balançar com o mar bravo”, detalhou o engenheiro.
– Reflutuação
Com o casco estável no fundo falso, a cerca de 30 metros de profundidade, um sistema pneumático esvaziou a água gradualmente de dentro do navio, empurrando-o para cima.
– Reboque para Gênova
Após completar a fase de reflutuação, iniciou a preparação para rebocar o transatlântico até o porto de Gênova, onde será desmontado. O casco foi desconectado das torres a boreste e preso por cabo a dois rebocadores na proa, que puxaram o navio. A última viagem do Costa Concórdia teve início dia 23 de julho deste ano, às 11h. Navegando a uma velocidade média de 2 nós, o navio chegou ao destino quatro dias depois, encerrando um dos mais marcantes capítulos na história marítima.
Órgãos governamentais envolvidos no resgate do Costa Concórdia
Defesa Civil, Bombeiros, Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, Tribunal, Marinha, Guarda Costeira, Ministério do Ambiente, Ministério dos Transportes, Ministério da Saúde, Ministério dos Bens Culturais, Região Toscana (Estado), Prefeitura, Universidades (que davam apoio ao time de meio ambiente federal e regional) e Agências Ambientais.
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